CAIO CARDOSO NEHRING
1971 - CURSO TÉCNICO DE DESENHO DE COMUNICAÇÃO
 
Esqueci completamente de como fui para no Iadê.

Sendo expulso do Rio Branco no meio do ano letivo, completei o 2º grau no Nuno de Andrade, também na Higienópolis. Eu tinha feito o pré-primário no Nuno e eles me aceitaram sem pestanejar.
O Nuno, na realidade, era uma escola fraca e reduto de gente indisciplinada, expulsa de outros colégios, na maioria mauricinhos e patricinhas, nem um pouco brilhantes e que não queriam nada com estudo.
Só queriam acabar o primeiro grau.
Foram seis meses de farras, matação de aula. Uma festa interminável.
Mas não me lembro como surgiu a idéia do Iadê e nem porque fui fazer o 2º grau lá.
Não encontrei ninguém nem do Arquidiocesano (donde fui expulso antes de entrar no RB), nem do Rio Branco, muito menos do Nuno de Andrade.
Isso (entre outras coisas) permanece uma incógnita. Porque o Iadê?

De repente eu estava na Angélica com a Paulista, numa escola de arte e decoração. Toda vez que me perguntavam onde eu estudava, eu dizia: Iadê. O quê? E vinha o bordão: Instituto de Arte e Decoração. Fazendo o quê? Técnico de Desenho de Comunicação.

E eu demorei mais ou menos um ano pra me adaptar. Era tudo diferente. Vinha daquela linha dura de colégio interno durante 8 anos, irmãos maristas, aquela travação.

Depois, Rio Branco, que era muito puxado e que no começo foi um drama: nunca havia estudado em colégio misto (fora jardim da infância e pré-primário) e levei um ano pra me acostumar. Quando me acostumei, fui expulso. No sufoco, fui pro Nuno, “pegar” um diploma.

Mas o Iadê... Eu nunca tinha visto nada parecido, estava deslumbrado. Os professores eram pessoas incríveis. Feras e sábios, na minha visão adolescente. Nesse meu primeiro ano, em 71, a escola começou a extrair do fundo da minha alma uma série de talentos que eu tinha e que foram adormecidos nos anos em que estive em escolas tradicionais, onde tudo era decorar.
Para se ter uma idéia, quando eu tinha prova de história geral, no RB, chegava a decorar 40 perguntas e respostas, o que equivalia decorar de 20 a 30 páginas do Livro oficial do Professor Tomé, uma temida múmia secular da “instituição rotaryana”.

No Iadê eu aprendi a entender a matéria, fosse aula de Português ou aula de Desenho e Composição.
Foi lá que aprendi a ler textos de sociologia, de literatura, ensaios (ah! As apostilas do Depto Teórico!), foi onde aprendi a dissecar os textos, quero dizer e extrair o máximo. Sentidos ocultos, descobertas fenomenais.
Se me perguntassem qual a melhor coisa que recebi do Iadê, eu diria sem pestanejar que foi a descoberta da visão crítica.

Claro que atravessei fases dentro da escola que eu classificaria de riponga total, paz & amor, afinal estávamos no início da década de 70 e dá-lhe hippies, festivais ao ar livre, Woodstock, Arembepe, o fim do ciclo do verão do Amor na Bahia e em Búzios...
E eu acabava entrando em choque com todos os professores que exigiam de mim essa visão crítica e reflexiva do mundo social em que estávamos vivendo.
Não sei se essa é a palavra exata, mas me arrependo de não ter percebido na época que a cobrança era saudável e que alguns professores viam em mim coisas que eu não conseguia enxergar.
Eu tinha um talento natural para o desenho e artes, em geral.
Sempre conseguia boas notas nas matérias como Desenho e Composição, Livre Expressão e até desenho técnico, com o exigente “Horje” ou a Lili.
E a convivência diária nesse mundo de cultura & artes, que era o dia-a-dia no Iadê, ia aos poucos transformando o meu traço e desenvolvendo a minha linguagem “visual”.
Uma mudança radical: a minha letra, que era horrorível, ganhou beleza e se transformou, deixando para trás os horríveis garranchos. Era a minha obra de arte em forma de letra.

Mas confesso: eu não estudava quase nada. Vamos dizer que eu prestava atenção nas aulas, quando estava na aula... E bombei duas vezes o primeiro ano. Uma delas por faltas, por ter ido para o Peru e só ter conseguido sair do Chile um dia antes da queda do Presidente Allende e a outra por uma hepatite seguida de apendicite aguda, o que me tirou de giro por simplesmente não conseguir acompanhar a classe, já que era uma negação em matemática, física e biologia.
Aliás, nesse momento, acho melhor confessar pela segunda vez: eu já não tenho certeza se bombei uma ou duas vezes. Eu “acho” que foram duas.
Além de ser uma escola que mudou radicalmente a visão que eu tinha do mundo, o Iadê foi o lugar onde comecei a me relacionar intensamente com um número inacreditável de pessoas, de uma forma tão intensa, que revendo a cena toda, de memória (o que consigo lembrar), vejo que foi aí que perdi um pouco o controle das coisas.
O fim da minha adolescência foi no Iadê.
Meu primeiro grande amor (e os vários que se seguiram) aconteceu no Iadê.
Ou seja (e não acredito que isso aconteça com todos que estudaram lá), infelizmente o Iadê ficou profundamente marcado em mim como o lugar onde se realizou o “pico” dos meus relacionamentos, onde conheci pessoas in-crí-veis, onde me transformei em adulto (irresponsável...), a escola onde passei por experiências inequívocas, essenciais e inesquecíveis em todos os “departamentos” da mente humana.

Foi a época das drogas formidáveis, dos LSDs e outras menos conhecidas, drogas de expansão de consciência. Foi o encontro da minha tribo interna com todas as outras tribos, que entravam e saíam da escola, ano após ano.
Foi onde comecei a beber, cercados que estávamos pelo Riviera, Ponto 4 e mais tarde o Jolly e aquele bando de gente maravilhosa ou não...
E eu, que tinha toda liberdade em casa, não tinha limites para nada na minha vida.
Eu ia até onde eu achava que não dava pra ir.

E é aqui que esse relato do meu tempo de Iadê se torna uma espécie de exame de consciência, de revisão dolorida, de arrependimento auto-imposto.
Eu simplesmente não aproveitei tanto quanto deveria tudo o que Iadê me ofereceu, me mostrou.
Foi um tempo na vida onde as emoções, para mim, eram mais importantes que o meu futuro profissional. Aliás, que futuro?
Eu estava no presente, vivendo uma vida que eu só conseguiria explicar no original, em inglês: Life in the fast lane. Ou ainda, sexo, drogas e roquenroll.
E embora esse “viver rápido” tenha tomado um rumo que eu não gosto de lembrar nem de pensar a respeito, em determinados momentos, o Iadê, como uma espécie de personalidade oculta minha, tomou a dianteira e me obrigou a apreender tudo que estava se apresentando e que eu insistia em deixar de lado, ignorando sua importância: o conhecimento, a cultura, meus talentos desprezados e a chance de incorporá-los de vez.
È obvio que depois de levar pau pela segunda (?) vez, me empenhei um pouco mais. Faltava pouco, procurava entregar todos os trabalhos, participava de todos os grupos de trabalho de verdade (e não apenas pra ter meu nome no trabalho), me impunha uma certa disciplina de produção, de estudo e de leitura.
Mas claro que esses surtos de responsabilidade não eram regulares.
Quantos trabalhos eu resolvi ou acabei uma hora antes de entrar na classe.
Quantos trabalhos eu acabei na classe...
Quantas noites pré-entrega dos trabalhos de desenho técnico eu varei pra poder encarar o Jorge na manhã seguinte.
E aqui percebo mais um valor que o Iadê me deu: o respeito ao professor.

Eu havia desenvolvido um total desrespeito aos professores, uma doença que começou no Arquidiocesano com aquele tipo de ensino facista Marista e seus “sacerdotes” (na vou falar nem das torturas, das humilhações, dos castigos e nem dos traumas que a educação marista deixou marcada na formação do meu caráter) e que tomou forma definida no Rio Branco.

Eu passei a odiar professores. Aquele tipo de relação “ou você faz o que eu peço ou eu fodo com você no fim do ano, na prova, no boletim”, aquele aprendizado careta e na marra... Não por nada, naturalmente, eu seria expulso das duas escolas.

O Iadê restaurou, digamos, minha fé no sacerdócio que é ensinar.
O Iadê era uma espécie de mega depósito de mentes brilhantes, que estavam te dando a chance de aprender, de evoluir. Você estava cercado de feras por todos os lados. Só não aprendia quem não queria. E eu, às vezes, não queria saber de nada. Só queria entrar em todas.
Eu não queria explicar, eu queria confundir.

Mas os professores do Iadê me desafiavam e esse desafio meio que me deixou com pelo menos um pé no chão.
O lado mais responsável, o lado que queria crescer e aprender.
É impossível não lembrar (sempre) com admiração do Jota Jota, do Jorge, do Fajardo, do Wilson de História da Arte, do Ugo Japonês, de Fotografia e dos momentos epifânicos que eles me proporcionaram.
Eu deixava do lado de fora da aula deles a minha porção cafajeste, rebelde, marginal...

É impossível não lembrar com emoção das aulas de Sociologia do Renato, da chamada de consciência que essas aulas produziram ao meu anarquista de butique particular.
De todo o trabalho que a Lili, a Tamiko e a Ana (do Chaves, será Maiolino?) tiveram comigo e de todo o empenho que demonstraram ao tentar me conscientizar que eu tinha um dom natural e que tinha por obrigação desenvolvê-lo.
Das conversas em aula e fora dela que tive com a Maria Helena (OSPB e outras), que além de professora era meio psicóloga ou psiquiatra. As medicações que ela usava em mim eram baseadas em lucidez, trabalho constante e dependiam de disponibilidade própria (a minha, of course...).
Era preciso estar disposto e aberto para aprender e penetrar no Novo Mundo Contemporâneo. Era preciso disciplina. Era preciso ler e reler e refletir.
Outro pequeno insight e me dou conta de que sem a ajuda deles a coisa poderia ter sido bem pior: eu podia não estar aqui pra contar a minha história.

Agradeço, antes que eu me esqueça, ao vivo, em cores e on-line, a todos os professores que passaram pelo Iadê.
Todos, sem exceção, os que me lembro, além dos que já nomeei e o Edy, o Odair (Grande Odair, passou sufoco bem maior que o meu no Chile...), o Roberto de Física, o grande Luiz Fichmann (que reencontrei, vivo, graças a Deus...), ao Marcelo Nietzche (um chato de duas galochas, mas que mexeu muito com a minha sensibilidade para o imprevisto, a improvisação), aquela professora de Biologia que acho que se chamava Neuza (grandes olhos verdes escuros escondidos atrás de óculos fora-de-moda), a Betty Braite (ta certo?) de Literatura (grande Betty, que saudade eu tenho dessa mulher e das duras macias que ela me deu, como se dissesse, cai na real, garoto!), do Jurandyr de Educação Física, o Hélio carioca (chamando as meninas de nenéin), a Diva (que penou muito na mão dos mais bagunceiros)...
Sinto o maior orgulho de ter sido aluno de todos eles e poder falar que fui.
Não posso deixar de reconhecer e agradecer a paciência e a disponibilidade constante do Emílio e da Isabel. E também do pessoal da Secretaria, a outra Isabel (mulata linda e braba pra daná...) e o grande e sempre presente Oswaldo, o monossilábico e eficiente Oswaldo...

Para mim, é quase impossível falar sobre o Iadê de uma maneira que não seja sob a ótica da emoção. Posso chegar até as raias da pieguice e dizer inclusive, que essa escola preencheu o vazio que existia na minha alma.
E eu não seria absolutamente piegas, nem estaria mentindo.
Eu sei, isso aqui não está sendo nada didático. Mas a lembrança, o meu memento Iadê, não é nada didático. Nem ao menos racional.
E cheio de adjetivos como louco, magnífico, revelador, “chapante”, “desbundante”, definitivo...

Durante muito tempo depois e no tempo em que morei em Londres, eu só conseguia ver o mundo com os olhos do Iadê e tudo era uma mista constante de teoria e prática, tudo era passível de ser absorvido e transformado em Arte.
Mas junto a todo esse “embasamento cultural e artístico” único, que só uma escola nos moldes do Iadê poderia fornecer, estão também as pessoas e aqui eu me refiro aos alunos.
Para mim isso é indissociável. Não existe a escola sem os alunos.

E eu posso garantir que nesses anos que eu passei n’A ESCOLA, eu conheci pessoas INCRÌVEIS e INESQUECÌVEIS.

Seria muito complicado falar de todas elas e para ser mais do que sincero, seria complicado mesmo falar de algumas, apenas.
Essas pessoas que me ajudaram muito a me tornar integralmente humano.
Todas essas pessoas com as quais me envolvi emocionalmente além de sermos parceiros na teoria e na prática do dia-a-dia Iadê.
Eu não me esqueci (e não conseguiria, se quisesse) de nenhuma das figuras que passaram pelas salas de aulas, cantina, saída das aulas, quadra esportiva, escadas, elevadores.... Eu não poderia. Não me lembro de todos os nomes, mas não esqueço de seus rostos, seus jeitos, seus modos, sua voz, suas atitudes, sua produção.

E eu vejo tudo isso como uma espécie de predestinação: Nós tínhamos que estar lá, naquele momento. Éramos um dos ingredientes sensacionais do Iadê, vivendo na estupenda década de 70, na minha modesta opinião, the best of times.
Até onde eu sei, nunca existiu escola como o Iadê.
Nenhuma escola alternativa podia oferecer o que essa escola nos deu assim como que por milagre.
Outro dia, cheguei a escutar um comentário do tipo “O Iadê, em 72, 73, era melhor que a Faap. Muita gente se decepcionou com a Faap quando começou a estudar lá, depois de ter feito Iadê. Parecia que não havia nada para aprender, tão inferior ou tão menos envolvente era a faculdade...”.
Não são palavras minhas. Escutei na exposição do Luizinho na Vila Madalena, pouco tempo atrás.

O Iadê foi como se eu tivesse encontrado uma lâmpada mágica com um gênio inspiradíssimo que me apresentava mil alternativas para minhas duas dúzias de pedidos, por direito...

Portanto, aos que lerem essas linhas mal traçadas, esse meu depoimento nada, nada didático e linear, eu peço desculpas e já tiro o meu da reta, levando em conta que:

- Nunca existiu escola como Iadê.
- Jamais existiu outra escola que tivesse a equipe de professores que o Iadê conseguiu reunir. Gênios, com todas as esquisitices e excentricidades que só os gênios têm e nenhum (que eu me lembre) que pudéssemos classificar de razoável, mediano. Todos estavam kilometros além do que conhecemos por mediano, ordinário.
- Vivíamos um regime militar e o Iadê conseguiu que tivéssemos liberdade de expressão.
- O Iadê respeitava a inteligência do aluno.
- O Iadê respeitava a todos. Até os declaradamente malucos e insanos como eu. (Que, diga-se de passagem, trabalhou no departamento teórico à noite e namorou uma das assistentes mais desejáveis daquele tempo...).
- Nenhuma outra escola de SP dos anos 70 tinha um quadro de alunos tão interessantes enquanto pessoas e promessas de futura genialidade. Cada um era uma figura única, indispensável, inesquecível.
- Nenhuma outra escola mista tinha tanta mulher bonita e interessante junta e em número assustador como o Iadê. Cheguei a sentar ao lado de 50 mulheres (duas classes reunidas), em aula teórica, onde nós homens éramos apenas QUATRO!
- Nenhuma escola tinha tantas “tribos” diferentes, numa convivência quase que totalmente pacífica.
- Nenhuma outra escola tinha aulas que (com freqüência) se transformavam em habituais brainstormings. Cada aula era um brainstorm.
- Naquela (minha) época, nenhuma outra escola (de segundo grau) tinha um curso de redação embutido na cadeira de Português-Literatura (ministrado pelo terror-maravilha que era o Jota...).
- Nenhuma escola tinha os convidados “VIPS” para palestras informais como o Iadê tinha.
- Nenhuma outra escola era parecida nem era o Iadê.


A minha relação com o Iadê foi tão intensa, apaixonada e louca, que cá entre nós, até hoje não me recuperei.

"...Foi o melhor e o pior dos tempos, a idade da sabedoria e da insensatez, o século das Luzes e a estação das trevas, a primavera da esperança e o inverno do desepero.
Tínhamos tudo e nada tínhamos, íamos todos diretamente para o Céu ou em direção diametralmente oposta -em suma, aquele período era de tal modo...( )... que as autoridades mais estridentes insistiam em falar dele, pelo Bem ou pelo Mal, apenas no grau superlativo."

Charles Dickens (1812-1870), Um Conto de Duas Cidades (1859), primeiras linhas.


Sinceramente,

Caio Nehring







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