LEONORA FINK
1975 - CURSO TÉCNICO DE DESENHO DE COMUNICAÇÃO
 
apostila para a matéria semiologia II - da grade do segundo ano do curso técnico de desenho de comunicação 1975 - professor Renato Vieira Filho

TEXTO 9: UM NOVO REALISMO, A COR PURA E O OBJETO

Pode considerar-se a evolução artística atual como uma batalha que se trava, e que dura de há cinqüenta anos para cá, entre uma concepção do tema derivada da Renascença italiana e o interesse pelo objeto e pelo tom puro, que se afirma cada vez mais nas nossas idéias modernas.
Esta batalha merece ser seguida, observada e estudada de perto, porque permanece muito atual. É uma espécie de revolução cujas conseqüências são muito importantes. Esse sentimento do objeto existe já nos quadros primitivos – nas obras das antigas épocas egípcia, assíria, grega, romana, gótica.
Os modernos vão desenvolvê-lo, isolá-lo, extrair todas as possíveis conseqüências. A obrigatoriedade do tema deixa de ser aceita. Essa armadura que domina toda a arte da Renascença foi quebrada.
Destruído o tema, era preciso encontrar outra coisa, e são o objeto e a cor pura que se tornam valor supletivo.
Nesta nova fase, a liberdade de composição torna-se infinita. Uma liberdade total, que vai permitir composições imaginativas onde a fantasia criadora vai poder revelar-se e desenvolver-se.
Esse objeto que estava encerrado no tema torna-se livre, essa cor pura que não podia afirmar-se vai eclodir. O objeto torna-se a personagem principal das novas obras pictóricas.
Por exemplo, estou diante de uma paisagem composta de árvores, de céu, de nuvens. Vou interessar-me somente pela árvore, estudá-la e sacar todas as possibilidades plásticas que comporta: a casca, que tem um desenho muitas vezes expressivo, os ramos, cujo movimento é dinâmico, as folhas, que podem valer decorativamente. Esta árvore, tão rica em valor plástico, é sacrificada no quadro com tema. Isolada, estudada à parte, vai fornecer-nos material para renovar a expressão pictórica atual.
Devo reconhecer que, nesta tão apaixonante história do objeto, o cinema, com os seus grandes planos, permitiu-nos avançar mais depressa.
A batalha tinha começado antes. Já os impressionistas tinham iniciado a luta pela libertação. Os modernos seguiram-nos e acentuaram o esforço.
Mas, de qualquer modo, repito-o, o cinema tem aí qualquer coisa a ver.
Ao projetar fragmentos de figura – um olho, uma boca, uma narina – desencadeou o interesse plástico e aumentou as possibilidades já existentes.
Um pé calçado, debaixo de uma mesa, ampliado dez vezes no écran, torna-se um fato surpreendente, em que nunca antes se reparara. É uma realidade, uma realidade nova, que não existia ainda, quando nos limitávamos a olhar maquinalmente a extremidade de nossa perna, a andar ou sentados.
Uma nuvem isolada, fora do fundo azul do céu, tem muitas vezes um desenho e um relevo de uma riqueza que não se descobre quando faz parte da paisagem.
Também a investigação científica permitiu aos artistas descobrir esta nova realidade.
Plantas submarinas, animais infinitamente pequenos, uma gota de água com seus micróbios aumentados mil vezes pelo microscópio, tudo isso transforma-se em novas possibilidades picturais ou permite um desenvolvimento na arte decorativa.
Apercebemo-nos então, de que tudo tem um igual interesse, que a figura humana, o corpo humano, não é mais importante, do ponto de vista do interesse plástico, do que uma árvore, uma planta, um fragmento de rocha, uma corda. Trata-se de compor um quadro com estes objetos, havendo o cuidado de escolher aqueles que podem realizar uma composição. É uma questão de escolha da parte do artista.
Um exemplo: se componho um quadro utilizando como objeto um fragmento de casca de árvore, um fragmento de asa de borboleta, é provável que não se reconheça a casca de árvore, a asa de borboleta, e que se diga: que representa isto? É um quadro figurativo.
Aquilo a que se chama quadro abstrato é coisa que não existe. Não há quadros abstratos nem quadros concretos. Há quadros que nos comovem e quadros que nos deixam indiferentes.
Nunca se deve julgar um quadro por comparação com elementos mais ou menos naturais. Um quadro tem um valor em si próprio, como uma partitura musical, como um poema.
A realidade é infinita e muito variada. Que é a realidade? Onde começa? Onde acaba? Que dose de realidade deve existir na partitura? Impossível responder.
Outro exemplo sobre esta questão da realidade: fotografo, com muita exatidão e com uma luz muito forte, uma unha de mulher. Esta unha, muito cuidada, é valorizada como um olho, como a boca. É um objeto que tem um valor em si.
Depois projeto a unha aumentada cem vezes e digo a uma pessoa: veja aqui, é um fragmento de um planeta em evolução; e a uma outra: é uma forma abstrata. Ficarão espantadas e entusiasmadas, acreditarão no que digo. Mas, finalmente, dir-lhes-ei: não, o que acabam de ver é a unha do dedo mindinho da mão esquerda da minha mulher. Essas pessoas ir-se-ão embora vexadas, mas nunca mais farão a famosa pergunta: que representa isto?
Esta pergunta já não tem nenhuma razão de ser. O Belo está em toda a parte, no objeto, no fragmento, em formas puramente inventadas. O que é preciso é desenvolver a sensibilidade para poder discernir o que é belo e o que não é. A inteligência, a lógica, não têm nada a ver em tudo isso.
Não se explica a arte. É coisa do domínio da sensibilidade, que pode e deve desenvolver-se.
A lógica dedutiva é coisa fria, apenas gerou professores solenes e acadêmicos.
Uma educação é possível, existe até. A prova está na evolução da arte decorativa moderna. Os comerciantes e os industriais sentiram que esse famoso objeto tinha um valor publicitário. Compuseram vitrinas de modo a valorizar os objetos do seu comércio – 5 pares de meias apresentadas sobre um fundo de cor, fazem mais efeito do que 200 amontoados ao lado uns dos outros. Todo o comércio compreendeu e utilizou o advento do objeto.
Compreendeu-se a beleza dos objetos em si próprios e a inutilidade de os decorar ou pintar. Isto é muito moderno e muito novo.
O objeto industrial usual tem, muitas vezes, uma forma harmoniosa, determinada unicamente pelo seu funcionamento.
Belos materiais como o mármore, o aço, o vidro, a borracha, o couro, entram agora como valor decorativo em casas e monumentos sociais.

PINTURA MODERNA

O que seduz o amador esclarecido e fere o público não iniciado é a liberdade de composição que se manifesta no quadro moderno. Esta liberdade de composição resulta do fato de o tema, esse andaime de séculos, ser por nós tratado sem qualquer respeito. A Escola de Belas Artes, os acadêmicos, o Instituto, instalaram-se sobre o tema e sobre a representação mais fiel possível do que eles chamam a realidade, sobre a imitação e a cópia, se possível, da natureza.
A pintura moderna, pelo contrário, rejeita o tema e compõe sem ter em conta as proporções naturais. Aí reside a revolução atual.
Foram os impressionistas que começaram. Em 1860, mesmo em 1850, estes grandes artistas apenas quiseram ver nos objetos relações de cores. Para Renoir, para Cézanne, uma maçã verde sobre um tapete vermelho não era senão uma relação colorida de um verde e um vermelho. Isto parece não ser nada, mas este pequeno fato foi o começo da revolução pictórica.
Aquilo a que se chama os modernos, os fauves, os cubistas, os surrealistas, nada mais fizeram do que desenvolver e acenturar a libertação.
Tudo se encadeia, foi o impressionismo que permitiu o fauvismo, e assim por diante.
Não julgueis, no entanto, que todas estas escolas diversas se destruam umas às outras. Pelo contrário, repito-o, elas encandeiam-se, mas há, no interior do seu conjunto, uma reação de umas contra outras. Digo no interior, porque a vida é feita de contrastes – e se o cubismo severo de 1910 sucede às cores transbordantes do fauvismo, isso é perfeitamente natural.
Ao muito refinado século XVIII de Watteau e de Fragonard segue-se David, seco e exato. O pontilhismo de Signac e de Seurat era o fim do impressionismo. Era preciso reagir; o cubismo cinzento, preto e branco,chegou como contraste. Mas, apesar de todas estas reações profundas, há uma tradição que liga toda esta cadeia da pintura francesa.
Vê-se, portanto, a vida plástica que se desenrola ao longo dos séculos, com reações sensíveis de uns sobre os outros.
Essa famosa questão do tema, da imitação da natureza, domina toda a questão plástica e provoca a inquietação das pessoas não iniciadas, criou a confusão.
O fato de imitar bem o músculo, como Miguel Ângelo, ou uma figura, como Rafael, não cria um progresso nem uma hierarquia em arte. Se os artistas do século XVI imitaram formas humanas, isso não os torna superiores aos das grandes épocas egípcia, caldeia, indo-chinesa, romana, gótica, nas quais se interpretava a forma, estilizando-a, mas que não a imitavam.
Muito pelo contrário, a arte consiste na invenção – não consiste na cópia. A Renascença italiana é uma época de decadência artística. Essa gente, desprovida da capacidade de invenção dos seus predecessores, julgou tornar-se mais forte imitando. Mas é falso,: a arte precisa de ser livre na sua invenção, precisa de nos afastar de uma realidade demasiado presente. Quer se trate de poesia ou de pintura, essa é a finalidade.
A vida plástica, o quadro, são feitos de relações harmoniosas de volumes, de linhas, de cores. São estas três forças que devem reger a obra de arte. Se, ao harmonizar estes três elementos essenciais, acontece que certos objetos, certos elementos da realidade, podem entrar na composição, é talvez melhor, dá uma maior riqueza. Mas precisam de ser subordinados aos três elementos essenciais citados acima.
Por conseguinte, a obra moderna parte exatamente do ponto de vista oposto à obra acadêmica. A obra acadêmica coloca à frente o tema e, em segundo plano, os méritos pictóricos, na hipótese remota de para eles haver lugar.
Para nós, é precisamente o contrário. Toda a tela, mesmo não representativa, que provem das relações harmoniosas das três forças – cor, valor, desenho – é obra de arte.
Repito-o: se o objeto pode inscrever-se no quadro sem quebrar a estrutura, a tela enriquece-se.
Por vezes, essas relações são unicamente decorativas, quando abstratas. Mas se na composição entram objetos - objetos livres – que tenham um real valor plástico – obtêm-se quadros que atingem tanta variedade, tanta profundidade, como à custa de um tema imitativo.





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