LEONORA FINK
1975 - CURSO TÉCNICO DE DESENHO DE COMUNICAÇÃO
 
trabalho de redação criativa - continuação
apresentação e contra capa



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momento, e sofresse os efeitos da reação em cadeia? que atingindo feroz e decisivamente seu sistema nervoso, alcançou o clímax no momento em que, Alcindo correndo em seus tamancos, chegou até a cozinha, e com a respiração ofegante e mãos trêmulas, apanhou na gaveta de talheres, uma faca dessas de cortar o pão nosso de cada dia e com o instrumento brilhando e vibrando em suas calejadas mãos de lavadeira profissional, volta seu penetrante olhar de assistir novelas para a sala, sorrindo seu sádico sorriso auri-amarelo, contornado por rubro baton de camelô de feira livre, e caminho. com decisão e olfação em busca de tancredo, como que querendo dar fim a uma eterna pedra em seu caminho.
porém, chegando então; olha para todos os lados, sofá, da mesinha de centro à sala, alcinda não encontra o cônjuge vasculha todos os cantos da sala: embaixo do barzinho, atrás do amarelado retrato do casal que é beijado de passagem pela mulher, embaixo do tapete, etc. mas a busca
foi inútil. porém quando ia se dirigindo para a escada que dá para o quarto (o apartamento é duplex minha gente, segura eles) alcinda ouve uns gritos latidos ao longe e consegue identificá-lo e os localizar. era tancredo, já no último degrau da escada da sala que dá no telhado, com o televisor a cores nas costas, chorando e gritando mais ainda e já sem a sua inseparável peruca do dodô peruqueiro da timbiras. mas impávida e colossal alcinda toma fôlego e começa a subir um a um bem depressa, os 27 degraus da escada que dá no telhado e com a faca bem segura com a mão direita. apesar de quando chegar ainda com seus 102 quilos,
ao 5º degrau, tropeçar na peruca de tancredo, perdendo por sua vez
dentadura inferior, alcinda, valentemente, não desiste; levanta-se ajeita
lenço na cabeça, sacode o traseirão e segue em frente, pois não acreditava

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que tancredo tivesse pulado do edifício, senão quebraria o televisor com o choque no solo finalmente, depois de 15 minutos, alcinda chega ao telhado e encontra seu amado tancredo pendurado na antena de tv do vizinho, cantando meu amigo charles brown, em árabe, com a tv ainda nas costas e chorando cada vez mais, com os raios de sol fazendo brilhar sua careca, ofuscando um pouco a visão de assistir novelas de alcinda.
porém, indiferente e alheia ao sofrimento e angústia incomuns do companheiro comum-incomum de momentos incomuns em comum, a mulher respira fundo o ar poluído, faz o sinal da cruz com a mão esquerda, e erguendo com ódio a mão direita que levava a faca de aço inoxidável, cerra os dentes (artificiais e superiores é óbvio), dilata as pupilas, e parte, aos tropeções, para cima do pobre marido que já fechara os olhos e instintivamente cobria o rosto com a mão esquerda (a outra segurava o televisor nas costas), em sinal de auto-defesa físico-psicológica.
enquanto alcinda se aproximava tancredo exclamou como último recurso:
- não faça isso, tá?
e quando a distância entre os dois atingiu o mais alto grau de aproximação entre um casal em crise conjugal, alcinda zás! enfiou a faca na parte baixa da gravata de tancredo; pois alcinda, com aversão que tem pelos números ímpares (tinha um filho e o mesmo fugiu. agora com muito orgulho sente alívio ao dizer por aí que tem zero filho e 2 maridos), nunca poderia admitir em sã consciência (como naquele momento), que tancredo, seu amado, seu esposo, homem honesto e trabalhador (funcionário público municipal), mais ou menos pai de seu zero filho que fugiu para um circo, usasse uma gravata com 37 listras

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horizontais, e num momento de arrojo e desespero, agiu decididamente em defesa de um dos homens que mais amava, diminuindo o número de listras de sua gravata para 36, o que já a deixou mais serena e a crise conjugal amenizando tancredo em seguida, após os efeitos da crise e do choque emocional terem se dissipado no ar poluído da traição da avo são joão, desceu da antena de tv do vizinho, colocou o televisor a cores novinho no telhado e
respirando fundo novamente e expirando pela boca, desabafou à mulher, já sem lágrimas e com um costumeiro olhar búcolico de um bovino:
- pôxa alcindo meu amor, minha vida, meu feijão com arroz, sinceramente eu pensei que você, sendo tão bondosa e generosa como ninguém neste mundo injusto para os humildes, fosse com esta faca, matar as saudades dos tempos em que nos conhecemos, quando então eu era amolador de facas em tucuruvi, pedindo-me prá que eu quebrasse esse galho prá você, pois esta faca até que está um tanto míope não acha? veja, quase ela desfiou toda minha gravata de seda, não fosse a sua perícia em manusear facas e ela já teria se estragado e você perdido seu tempo de mulher atarefada. mas veja que linda manhã. não meu amor?
é. - respondeu alcinda torcendo o nariz.


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